


BELEZA NEGRA
Professora Lindinalva Vieira
O corpo referido na epigráfe acima está além da carne e de suas representações simbólicas, concebido como um território onde há o cruzo entre elementos físicos e míticos. Esse território é separado por limites, mas não por barreiras como fronteiras. O corpo humano compreendido como um microcosmo e não como um objeto dissociado da pessoa, configura-se em parte de todo o espaço físico. Isso implica dizer que está indissociavelmente ligado à comunidade e ao cosmos, ou seja, conectado ao universo, aos animais e as plantas. Nesse tipo de território, corpo e comunidade se completam como vetores de toda uma tecnologia de agregação social.
Entendendo que o corpo faz parte de um cosmo, ainda que em um país racista e excludente como o Brasil, em 2017 o “Projeto Pedagógico Axé Odara” teve como uma das suas atividades o “Desfile Beleza Negra”. Todas/os alunas/os negras/os que tiveram interesse, puderam desfilar nesse concurso de beleza do CECB. O desfile não teve apenas a pretensão de selecionar as/os alunas/os negras/os mais bonitas/os para expor ao público do CECB, mas sim, de construir uma perspectiva contra hegemônica ao pensamento eurocêntrico colonial, em que a beleza é entendida como branca, olho claro, cabelo liso e magra.
O padrão de beleza ocidental foi imposto pelas metrópoles coloniais europeias às suas colônias, e hoje, a mídia brasileira, ainda reproduz esse padrão de beleza como o ideal, pois é possível notar plateias de programas de auditório onde a maioria é branca, mesmo o Brasil possuindo mais 51% da população negra segundo dados do IBGE (2010). Outro exemplo ocorreu em uma novela que retratou a capital baiana, Salvador, onde mais de 80% da população é negra, mas a novela apresentou a maioria das/os atrizes/atores, principalmente as/os protagonistas, brancas/os. Os comerciais de televisão em que a grande maioria das/os atrizes/ atores são brancas/os. No entanto, quando aparece um comercial de uma marca específica, em que apresenta uma família negra, esse fato é motivo de debates, pois grande parte do público ainda não está acostumado a ver representações negras no cotidiano da televisão brasileira, e isso, é a marca do racismo brasileiro que desagrega a sociedade, pois os corpos negros que são partes que complementam o cosmo são vilipendiados
Por isso, para ser uma antítese do padrão de beleza branco ocidental e uma ação antirracista, o “Desfile Beleza Negra” tem o objetivo de visibilizar os corpos negros como exemplos de beleza, para assim, romper com o pensamento de um único tipo de beleza humana e também ajudar a construir uma autoestima e a valorização das características das/os alunas/os negras/os do CECB.
A concepção de que a beleza padrão é branca e eurocêntrica tem origem no processo colonial, e para Bhabha (1998) o estereótipo está relacionado a três regimes de visibilidade e discursividade: fetichista, escópico e imaginário. Desse tríplice exercício de salientar a ambivalência do poder colonial, conclui-se que
o ato de estereotipar não é o estabelecimento de uma falsa imagem que se torna o bode expiatório de práticas discriminadoras. É um texto muito mais ambivalente de projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas, deslocamento, sobredeterminação, culpa, agressividade, o mascaramento e cisão de saberes ‘oficiais’ e fantasmáticos para construir as posicionalidades e oposicionalidades do discurso racista (BHABHA, 1998, p. 125).
A exposição de Bhabha (1998), apresenta que o poder colonial opera por mediação do estereótipo que cristaliza e impede o movimento da diferença é muito mais poderoso do que as análises hierarquizadas simbólicas, por exemplo, dos conceitos marxistas. Dessa forma, não se trata de um poder absoluto, pois sua força parece residir em sua ambivalência. Uma ambivalência que, paradoxalmente, é também o espaço em que se torna possível pensar a agência do outro.
Diante dessa perspectiva, o “Desfile Beleza Negra” no CECB tem o interesse de que as/os alunas/os negras/os sejam protagonistas nesse evento escolar. O “Desfile Beleza Negra” ocorreu no próprio espaço físico do CECB, apesar da falta de estrutura, notei rostos felizes e entusiasmados por serem referências de beleza da escola.
Após o desfile, as/os professoras/es se reuniram em uma sala, sem a presença das/dos alunas/os, e citaram alguns pontos que seriam avaliados para a escola escolher o casal que iria representar a escola em outro desfile municipal em Porto Seguro, como desenvoltura, elegância, movimentos corporais, estética e fenótipo. Após processo de debate e votação, escolhemos as/os alunas/os Jade e Felipe para representar o CECB em um desfile que teria a participação de outras/os alunas/os representantes de cada escola do município de Porto Seguro. O nome desse desfile era “Bela África” que era promovido pela “Associação África”.
A representante do CECB, Jade, ficou em 3º lugar no concurso feminino, fato que trouxe orgulho para toda a nossa escola, principalmente para as educandas. Apesar dessa euforia, no papel de professor e pesquisador, notei que os desfiles tiveram um caráter essencialista, pois as roupas e as danças representavam uma/um única/o negra/o, e de certa forma rememoravam tanto uma cultura africana pura, ou também uma cultura afro-brasileira pura, sendo assim, nega a dobra, ou seja, a cultura das partes, “essa cultura parcial, é o tecido contaminado, e até conectivo, entre as culturas – ao mesmo tempo a impossibilidade de as culturas bastarem-se a si mesmas e da existência de fronteiras entre elas” (BHABHA, 2011, p. 82).
Foto: Alunas/os do CECB: Desfile Beleza Negra
Fonte: Cauim Benfica (2017).
No ano de 2018 houve uma antecipação do “Desfile Beleza Negra”, para a data 13/11/2018, porque os organizadores do evento “Bela África”, solicitaram que enviássemos com antecedência os nomes das/os alunas/os do CECB que iriam representar a escola no desfile desse mesmo ano, pois as/os alunas/os que iriam representar o CECB precisavam ensaiar com as/os outras/os representes de outros bairros de Porto Seguro.
No concurso “Bela África” desse ano, as/os representantes do CECB ficaram entres as/os três primeiras/os colocadas/os. O aluno Anderson ficou em 1º lugar, e a aluna Jade ficou em 2º lugar. Após essa conquista, percebi que a visibilização das/os alunas/os negras/os através dos desfiles na Escola e no Concurso de beleza no município, causou um grande impacto nas/os educandas/os, pois ficou evidente durante as aulas de geografia e nos corredores do CECB que o fato de ser negra/o passou por um processo de reconhecimento, orgulho e empoderamento das/os alunas/os negras/os.
Fotos: Desfile “As Mais Belas Chamas da África”
Fonte: Cauim Benfica (2018).
A partir dessa constatação, notei que os desfiles “Beleza Negra” e “Bela África” se tornaram uma estratégia essencialista negra para deslocar o estereotipo branco do posto de único exemplo de beleza, a ponto de algumas meninas brancas reivindicarem a participação em um desfile de beleza no CECB.
Hall (2003) nos apresenta pontos fracos desse momento essencializante e das estratégias criativas e críticas,
esse momento essencializa as diferenças em vários sentidos. Ele enxerga a diferença como “as tradições deles versus as nossas” – não de uma forma posicional, mas mutuamente excludente, autônoma e auto-suficiente – e é, consequentemente, incapaz de compreender as estratégias dialógicas e as formas híbridas essenciais à estética diaspórica. Um movimento para além desse essencialismo não se constitui em estratégia crítica ou estética sem uma política cultural, sem uma marcação da diferença. Não é simplesmente a rearticulação e a reapropriação como um fim em si mesmo. O que esse movimento burla é a essencialização da diferença dentro das duas oposições mútuas ou/ou. O que ele faz é deslocar-nos para um novo tipo de posição cultural, uma lógica diferente da diferença (HALL, 2003, p. 345).
Nos desfiles “Beleza Negra” e “Bela África” as roupas das/os alunas/os resgatam uma vestimenta e pinturas que buscam representar etnias tribais de África. Questiono-me se as/os negras/os da diáspora brasileira devem nesse momento histórico recusar as roupas usadas na contemporaneidade, como jeans, vestidos, calças, blusas, roupas sociais ou recusar os recortes de tecidos que rememoram tempos tribais?; as/os negras/os devem usar maquiagem ou pinturas que simulam uma etnia tribal de África?”; “elas/eles devem recusar o “ou” e assumir o “e”? São negras/os e brasileiras/os, e podem usar a roupa que lhe for apropriada, pois o risco desse essencialismo são as/os negras/os permanecerem como representantes apenas do passado.
Nessa perspectiva, no ano de 2019, a organização do desfile “Beleza Negra” teve interesse em que as/os alunas/os negras/os participassem do desfile usando as roupas que geralmente usam no dia-dia, ao frequentarem festas, eventos religiosos, passeios em lugares turísticos de Porto Seguro, encontros e reuniões nos bairros periféricos da cidade. A/o aluna/o iria escolher a roupa que lhe representasse. Uma parte das/os educandas/os que nunca tinham participado do evento ficou entusiasmada com essa ideia. Porém um pequeno grupo ainda queria usar roupas folclorizadas, porque acreditavam que daquela forma representavam a cultura “ancestral”, e consideravam divertido, mesmo com todas as ponderações e discussões sobre essa “ancestralidade”. Sendo assim, chegou-se à conclusão que cada educanda/o usaria a roupa mais significativa, algo que mais a/o representasse.
No desfile notei que algumas/alguns alunas/os foram mais formais, sem muitas cores, outros tentaram misturar o vestuário, ao usar um vestido colorido e adereços no braço ou cabelo, e teve também aquelas/es que usaram uma roupa folclorizada com pinturas e amarrações, com o interesse de simbolizar as tribos africanas. Os figurinos em tela representam o “Odaperspectivismo”, pois existem interpretações do sentido do vestuário a partir de uma problematização, o que possibilitou a participação de um maior número de educandas/os, haja vista que estavam usando uma roupa que, de certa forma, representava a sua relação com o mundo.
O desfile “Beleza Negra” de 2019 foi uma festa. Ocorreu a noite, no dia 13 de novembro, no Centro de Cultura de Porto Seguro e integrou os turnos matutino, vespertino e noturno. Todos os turnos tiveram representantes no desfile. Uma aluna foi a apresentadora, a Janyne. O desfile contou também com a participação da banda da escola que tocou músicas do Olodum. Sendo assim, o desfile “Beleza Negra” colaborou para unir o corpo e a comunidade que são fatores de agregação social, e também complementam o cosmo.